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Crónica: A música não uniu na Eurovisão mais polémica de sempre e é preciso mudar

Crónica: A música não uniu na Eurovisão mais polémica de sempre e é preciso mudar Créditos da imagem: © Corinne Cumming / EBU
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Em novembro do ano passado, foi anunciado que «United By Music» [«Unidos Pela Música»] seria o slogan permanente do Festival Eurovisão da Canção (ESC) por refletir na perfeição aquilo que o certame pretende: ser um ponto de união de povos e culturas através da música.

Ironia das ironias, a primeira edição com este slogan permanente fez tudo, menos isso. Foi um ESC altamente volátil do ponto de vista político, em ambiente de alta tensão, provavelmente o mais controverso de sempre, difícil mentalmente não só para os participantes, como também para muitos fãs. E isto em nada fez bem à imagem do certame, além de criar dúvidas sobre a sua real capacidade de ser um farol de paz e amor através da música.

Neste artigo, só vamos abordar as grandes polémicas desta edição, as que realmente dividiram. Não contamos, por exemplo, com o caso do desvendar inadvertido dos resultados parciais do televoto italiano na segunda semifinal.

 

A questão central: Israel

Ponto prévio: Esta é uma crónica de reflexão acerca dos acontecimentos do ESC 2024. Por isso mesmo, mantemos a imparcialidade editorial do ponto de vista político, não tomando qualquer posição sobre a situação de Israel. Apenas relataremos e apresentaremos factos sobre o conflito israelo-palestiniano ou qualquer outra situação política.

Desde cedo se percebeu que o ambiente no ESC 2024 poderia ser muito complicado. Em outubro do ano passado, o Hamas lançou fortes ataques a Israel. O país respondeu com um massacre que continua, e é censurado por muitos. Sucederam-se os apelos para impedir Israel de participar, incluindo petições e ameaças de boicotes. Nenhuma se concretizou, apesar da autorização da União Europeia de Radiodifusão (EBU).

E aqui encontramos o primeiro ponto de desunião na edição de Malmö. Vários artistas optaram por não se calar, utilizando a plataforma para exporem o seu apoio à Palestina, censura a Israel e apelos a cessar-fogo. Estava criado o rastilho para uma Eurovisão 2024 altamente politizada, que foi o que se verificou.

Nos bastidores, surgiram várias acusações de intimidação e perseguição por parte de jornalistas e até membros da delegação israelita. Verdade ou não? Não podemos afirmar com plena certeza o que não testemunhamos na primeira pessoa. Certo é que o tema foi levado à EBU por pelo menos cinco países. Se existiram consequências? Pelo menos, visíveis para o público e jornalistas que cobriram no centro de imprensa online, não.

 

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Devia Israel ter sido impedido de participar no ESC 2024, à imagem do que aconteceu com a Bielorrússia e a Rússia após a invasão da Ucrânia em 2022? As situações são ambas reprováveis e desumanas, mas muito diferentes, quer na perceção pública, quer do ponto de vista das ações: a Rússia invadiu um país soberano reconhecido pelas Nações Unidas sem sofrer qualquer agressão, por ambições imperialistas de um ditador.

Israel respondeu (de forma desproporcionada) aos ataques de uma organização terrorista que toma conta de forma autoritária do território da Palestina – que não é um país, nem um Estado reconhecido como membro da ONU. No entanto, está a acontecer um massacre desnecessário do povo palestiniano em que civis não são poupados na guerra contra o Hamas em Gaza.

Independente do juízo que se tenha acerca da guerra de Israel, na situação atual o mais prudente teria sido afastar o país do ESC 2024. Mais não fosse, a bem da integridade da competição e dos seus participantes, e para manter a política o mais possível de fora como é intenção da EBU. Era evidente que a presença israelita iria tornar o evento altamente político entre fãs e participantes, considerando o apoio expresso por muitos artistas à causa e povo da Palestina. E o assunto chegou à política, como são exemplo as declarações da vice-presidente do governo de Espanha a classificar a presença israelita como uma forma de branquear a imagem.

A participação de Israel foi um ponto de discórdia e alta tensão perfeitamente evitável, acabando a EBU por tornar o evento altamente político ao aceitar o país – cumpra ou não os requisitos de participação, numa discussão que daria para uma só crónica. E também de suspeição. A canção de Eden GolanHurricane, teve uma magra pontuação do júri e foi a segunda mais votada pelo público. Houve boicote? Não houve boicote? É censurável? Não é censurável? Cabe à análise de cada um.

Do lado do júri, deu aso a teorias de que houve uma espécie de boicote. Realidade ou não, fica a suspeita. Assim como fica a suspeita de que o forte televoto ou foi uma expressão de apoio a Israel, ou consequência de «compra de votos» ou algum outro esquema. Não enveredamos nem defendemos teorias da conspiração ou rumores. Mas elas existem e passam tudo, menos uma sensação de união.

E depois, algo muito lamentável: as vaias constantes a Eden Golan na arena. Um ambiente nada fácil de lidar para uma artista, que está longe de ser a culpada pelas ações bélicas dos governantes do seu país. Por consequência, há suspeitas de que a realização suprimiu na transmissão o barulho das vaias e colocou aplausos falsos. Mais uma vez, ninguém pode afirmar que é verdade. Mas é outro ponto que contribui para um clima de desunião e críticas à censura.

 

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Para além disso, a participação de Israel obrigou a fortes medidas de segurança, incluindo a presença de snipers pela cidade de Malmö, perante o grande receio de ataques terroristas… que seriam uma preocupação e um risco bem menores sem a presença israelita. Motivos mais do que suficientes para, num momento como o atual, mais não fosse por prevenção, o país tivesse ficado de fora.

 

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Todo este ambiente politizado teve consequências: Alessandra (Noruega) e Käärijä (Finlândia) desistiram de anunciar os votos dos júris dos respetivos países na final. E Slimane parou de cantar no último ensaio para apelar à união pela música com paz e amor. Para além do ambiente de insegurança relatado por algumas delegações, com a AVROTROS (emissora dos Países Baixos) a tê-lo denunciado à EBU.

Mesmo à margem do evento, Malmö foi palco de fortes manifestações de apoio à Palestina e contra Israel, politizando ainda mais o Festival Eurovisão da Canção. Tudo evitável com uma decisão difícil, mas, ao mesmo tempo, simples, que protegeria o evento.

 

Tolerância zero ou censura?

Pelo ambiente muito tenso politicamente que se vive no mundo hoje em dia, a EBU teve tolerância zero para manifestações políticas. Obrigou Bambie Thug, da Irlanda, a remover uma mensagem de apoio à Palestina e ao cessar-fogo em Gaza no dialeto Ogham. Uma forma discreta de passar a ideia, que talvez poucas pessoas tivessem compreendido, mas que daria a oportunidade a Bambie Thug de se expressar livremente.

 

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E aqui questionamos: deve a liberdade de expressão ser posta em causa para impedir a política de entrar no ESC? Vale tudo para fazer as regras e o espírito das regras prevalecer? E há no ESC no geral, em algum momento, «dois pesos, duas medidas?» Temos a nossa posição, mas deixamos a resposta para uma reflexão individual, mantendo editorialmente a isenção.

alyona alyona, representante da Ucrânia, revelou à imprensa do país que os artistas estiveram sob escrutínio constante, sendo impedidos de mostrar quaisquer manifestações que pudessem ter cariz político. Ainda assim, iolanda, representante de Portugal conseguiu «passar» com as suas unhas a conterem motivos palestinianos. E na conferência de imprensa da segunda semifinal, as manifestações de artistas enquanto Israel estava a falar, foram, no mínimo, esclarecedoras.

 

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Um dos convidados da primeira semifinal, Eric Saade, usou um lenço palestiniano na sua atuação e foi criticado pela EBU por ser, pretensamente, um «statement». Convém dizer que o artista tem raízes palestinianas e assegurou que apenas pretendeu mostrar essas suas origens.

As acusações de censura agravaram-se com a interdição de bandeiras da União Europeia, considerando-a um símbolo político. Um rigor que nos parece demasiado e desproporcional, até porque para muitos trata-se de um símbolo de identidade europeia e não político. E é um símbolo de união entre os países da comunidade, que até constituem a larga maioria de participantes na Eurovisão.

A Comissão Europeia teceu fortes críticas a esta proibição, enquanto a EBU admitiu que a política de bandeiras pode ter sido aplicada de forma mais rigorosa tendo em conta as circunstâncias atuais. As regras prevêem apenas a permissão de bandeiras dos países participantes e arco-íris. Mas a verdade é que Nemo, que ganhou pela Suíça, revelou que teve de esconder a sua bandeira não-binária perante o impedimento de a usar por parte da organização. Os próprios fãs foram barrados de transportar tais bandeiras para a arena.

Se é verdade que as circunstâncias exigiam um cuidado especial, não é menos verdade que a perceção que fica é de um ambiente de censura, criticado amplamente pela comunidade de fãs e até por artistas. Por mais que possa não ser a intenção.

Mesmo com o rigor, as mensagens políticas não deixaram de estar presentes. Um exemplo: Dons, representante da Letónia, apelou em conferência de imprensa para o facto de qualquer país do mundo merecer ser livre.

 

O caso Joost Klein

Como se não bastasse toda a situação em torno de Israel e do ambiente político que atualmente se vive no mundo – e é indissociável da Eurovisão – ainda surgiu mais uma forte polémica: a desclassificação de Joost Klein, representante dos Países Baixos.

Os factos do incidente ainda não são muito claros. A emissora holandesa AVROTROS fala de um gesto ameaçador por parte do artista a uma fotógrafa que captava imagens num momento em que havia acordos para não o fazer. Ter-se-á tratado de uma resposta mais violenta depois da insistência para não ser alvo das objetivas.

Já o jornal Aftonbladet escreve que Joost Klein terá admitido à polícia que ergueu o braço de punho cerrado e apontou para a fotógrafa, mas sem a atingir, mostrando-se logo arrependido além de pedir desculpa. Por agora, toda a realidade do que aconteceu não é possível apurar. O caso está entregue às autoridades suecas.

Porém, é indesmentível um facto: a desclassificação de Joost Klein é outro ponto de desunião no ESC 2024. Há várias formas possíveis de ver o assunto, mas a generalidade dos fãs defende o mesmo que a AVROTROS: que foi uma medida desproporcional e injusta.

Não o podemos afirmar taxativamente por não conhecermos todos os contornos do caso. Por isso não fazemos juízos de valor, restando acreditar-nos que a EBU teve fortes indícios para suportar a sua decisão. Ou então, uma política rigorosa de tolerância zero perante gestos agressivos, que vão contra todo o espírito das regras. Mas também há quem possa pensar até, no extremo, que se tratou de uma tentativa de demonstração de força da EBU através de um exemplo para tentar evitar casos de violência e desrespeito no futuro.

Certo é que, parece-nos, depois de o caso rebentar, e perante os interrogatórios policiais, Joost Klein não tinha condições para continuar a atuar. Mas enquanto a desclassificação incidiu sobre o artista, foram os Países Baixos a ficar de fora da competição, bem como a AVROTROS que não teve culpas diretamente. Fica a questão no ar: por que não impedir o artista de atuar e manter a participação do país com a gravação da semifinal? Poderia ser esta uma solução de compromisso, afastando preventivamente Joost Klein sem impactar a participação holandesa?

Também é certo que os fãs se mostraram muito irritados com a EBU pela decisão quanto aos Países Baixos. Os assobios foram bem audíveis nas duas vezes que o supervisor executivo Martin Österdahl interveio na final: ao confirmar que os votos estavam válidos e ao anunciar as pontuações do júri dos Países Baixos.

 

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A música, no fim, venceu?

O mais importante do Festival Eurovisão da Canção é a música. É a música e a partilha que deve estar no centro do assunto. Mas terá a música realmente vencido?

Perante tantas polémicas, o dia após a final foi mais passado a discutir essas controvérsias do que a dar destaque à vitória de Nemo, com a canção The Code – e, sendo totalmente isentos do ponto de vista dos gostos, há que reconhecer que foi das canções mais fortes a concurso pelo que o triunfo é merecido.

Seguramente as 37 canções participantes entrarão para playlists de muitos fãs e seguidores ocasionais do certame, mas também é certo que fazendo uma passagem rápida pela imprensa especializada e generalista as polémicas dominam as manchetes. Não a música e o destaque que lhe deveria ser dado.

Porém, entre os artistas o clima de união foi visível em vários momentos. Durante a final, representantes de alguns países foram comemorar efusivamente com os de outros países quando estes receberam a pontuação máxima. Nemo e Marina Satti mostraram-no.

 

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Sem embargo, os concorrentes estiveram sujeitos a um ambiente negativo durante a semana – uns mais que outros, é certo. Silvester Belt, que representou a Lituânia, admitiu que foi uma das piores experiências da sua vida depois da primeira semifinal. E não é nada suposto o ESC ser isto para os artistas.

É suposto ser um motivo de união, partilha da música e de celebração. O que, em todo o caso, pelas impressões que nos vão chegando parece ter prevalecido de certa forma apesar de toda a tensão existente

 

Um possível ponto de união

No meio de tanta discórdia no ESC 2024, há um ponto que parece ter algum consenso – pelo menos, entre os fãs: a exigência de mudanças urgentes na União Europeia de Radiodifusão, com uma figura à cabeça: o supervisor executivo do ESC, Martin Österdahl.

Têm-se sucedido comentários nas redes sociais a pedir a demissão do sueco, que – culpado ou não, porque não há decisões unilaterais – é o rosto da EBU para a Eurovisão e é em cima de si que recai toda a insatisfação.

Não sabemos qual a postura das emissoras participantes sobre a continuidade ou não da atual estrutura da EBU dedicada ao certame – ainda não existiram comentários oficiais sobre o assunto. Porém, pelo tom do comunicado da AVROTROS sobre o caso de Joost Klein, pelo menos a emissora holandesa deverá requerer mudanças para continuar. E outras, como a RTP de Portugal, pediram uma reunião de esclarecimentos à EBU acerca do que se passou neste ESC 2024.

O que nos parece é que, numa comunidade de fãs tão apaixonada e intensa como a do ESC, Martin Österdahl e o Grupo de Referência podem não ter condições para continuar. A imagem aqui é tudo, e a permanência das atuais lideranças poderá afastar muitos espectadores insatisfeitos do evento no próximo ano.

Há que renovar, há a sensação de fim de ciclo. Nemo apelou a uma reflexão do que a Eurovisão representa e deveria ser, na conferência de imprensa após a vitória.

E, perante os acontecimentos do ESC 2024, essa é de facto uma reflexão que tem de acontecer. Tem de haver uma mudança de rumo, talvez mesmo uma mudança de liderança, ideias novas. Não só para o formato em si, como também como o impermeabilizar mais à política.

Como fazer prevalecer aquele que é o verdadeiro espírito do ESC: unir países, unir povos, unir culturas, através da música. Ser um ponto de paz e convívio que deixa as guerras e conflitos de lado e anula as diferenças. Uma missão difícil num mundo altamente volátil politicamente, com os conflitos em curso.

Que tem de ser confiada a pessoas com know-how, força e experiência suficientes para tal. Força, sem pôr em causa a liberdade de expressão e de pensamento. Ou seja, há que encontrar um bom equilíbrio, tão difícil de encontrar.

Polémicas, sempre existirão. Mais não seja as já habituais pequenas controvérsias pelo descontentamento com os resultados, seja o sistema de votação qual for – que são sobretudo discussões normais entre fãs em qualquer competição, não afetando o ambiente do evento. Mas uma Eurovisão tão controversa, tensa e negativa mentalmente como a de 2024? É urgente refletir, pensar, debater e mudar para não se repetir, senão, o futuro do certame pode ficar em risco.

Sobre o autor

Bernardo Matias

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